“Sem a escravatura, o que seria na América o seu comércio de exportação! Com escravos é que se trabalha nas minas, é que se tira esse precioso metal tão desejado, esses diamantes que tem sido de tão grande recurso ao estado; essa lucrativa e sobretudo interessante lavoura, principal riqueza do Brasil, e da América em geral, da qual a Europa mesma não pode mais prescindir”¹
Há cerca de cinco anos o jovem artista Dalton Paula vem transitando no terreno da tradição brasileira que problematiza as relações da arte com as complexas questões éticas, sociais e políticas que atravessam a formação histórica do país; principalmente, vem operando com a revisão das narrativas da escravatura e de suas consequências trágicas causadoras de exclusão social, de marginalização e de apropriação injusta da força de trabalho dos povos negros na sociedade contemporânea; sem rancor e sem denúncia, mas com inteligência crítica, com refinamento poético e com embasamento histórico, vem empregando ironia e humor, ora cáustico ora debochado, para abordar assuntos que de certa forma encontram-se entranhados na sua história subjetiva, pessoal, como jovem negro consciente de seu estar no mundo.
Dalton Paula vem transitando por pintura, objeto, instalação, performance, fotografia e vídeo, sem estabelecer uma ordem hierárquica entre os diferentes meios e sem que haja perda de seu potencial poético expressivo, uma vez que a escolha de cada suporte advém da ideia poética que o artista pretende tornar realidade. Neste panorama aberto existem costuras que alinhavam as partes tornando-as um conjunto coeso, estruturado por ações que se repetem ou se alternam, que incidem ou reverberam, que se explicitam ou se deixam veladas, a cada fragmento. Essas ações são marcadas pela interpretação crítica de acontecimentos históricos ou cotidianos, pela impregnação de um aspecto religioso, místico, advindo dos cultos afro-brasileiros, pelo uso de seu próprio corpo e de imagens de corpos alheios, pelo confronto de alteridades entre o autobiográfico e o outro apropriado, pelo choque entre o forte e o fraco, entre o senhor e o escravo, pelo desfazimento das demarcações das funções e dos territórios de direitos, que à base da violência foram constituídas no quadro social brasileiro.
Amansa Senhor, título da atual exposição de Dalton Paula na Galeria Sé, foi extraído da expressão que designava, durante o período da escravatura, os artifícios de feitiçaria empregados pelos escravos sacerdotes – oficiantes da origem do candomblé – para abrandar o caráter agressivo de seus senhores. Poções ministradas em pequenas dosagens que amansavam lentamente por envenenamento. Amansa senhor é também uma nomeação popular dada a erva-da-Guiné (Petiveria Alliaceae), planta que integrava o herbário negro e que possui perigosas propriedades farmacológicas; entre os efeitos provocados pelo uso do pó extraído de sua raiz constam: “superexcitação, insônia, alucinação, indiferença, imbecilidade, amolecimento cerebral, convulsão tetaniforme, paralisia da laringe e em seguida a morte no prazo de, aproximadamente, um ano dependendo das doses ingeridas”². São estes efeitos da erva-da-Guiné que foram utilizados na ação de resistência, subversão e revolta dos escravos contra a dominação de seus senhores.
As propriedades defensivas da Erva-da-Guiné são bastante reconhecidas popularmente e fizeram-na obrigatória em muitos rituais das religiões afro-brasileiras, sendo atribuída a distintas entidades, ou sendo ingrediente presente no receituário de inúmeras garrafadas fitoterápicas ou em banhos para cura de enfermidades e para limpeza espiritual; plantada em quintais e jardins de terreiros de candomblé e de umbanda, é também, por meio do sincretismo, sempre vista em jardins e vasos de seguidores do cristianismo cheios de superstições, prestigiada pela crença na sua qualidade de afugentar as más energias.
Dalton Paula ao inserir em algumas obras a erva-da-Guiné e outras plantas medicinais, evoca tanto um processo de cura encarado como tratamento das chagas históricas causadas no corpo social pela escravidão, quanto o processo de rebelião por envenenamento, que visa destruir o ponto de vista branco ortodoxo e alterar a origem da fala sobre a posição no negro na sociedade e na cultura brasileira. Nascido em Brasília e vivendo em Goiânia, cidades modernas construídas muitas décadas depois a abolição da escravatura, onde as manifestações da cultura afro-brasileira não são tão relevadas, Dalton Paula em seu aprofundamento busca continuamente referências culturais em Salvador e no interior da Bahia, locais onde se concentram as expressões culturais de matriz africana no Brasil.
No período em que esteve na residência Muros: territórios compartilhados, em convivência direta com o ambiente do Mercado São Joaquim, na capital baiana, absorvendo os modos de vida, as histórias e as crenças de seus comerciantes e frequentadores, Dalton Paula executou a fotografia Tabuleiro (2013). Obra na qual recorre à noção de performance orientada para a fotografia, que detalhadamente concebida pelo artista não possui estatuto de imagem de segunda ordem. Geralmente são performances infiltradas pelo conceito de site specific, vinculadas aos aspectos que determinados locais possuem e que interessam ao artista. Tais locais inicialmente eram sem identidade própria, quase sempre periferias indeterminadas das grandes cidades, mas depois foram ganhando outras especificidades: campos do agronegócio e até um fragmento da paisagem da capital federal. Em Tabuleiro o local constitutivo da obra é identificado na fotografia pela placa de endereço, fixada no muro, que informa tratar-se da ladeira do hospital. O muro do Hospital Santa Izabel é escolhido como local constitutivo da obra. O nome do hospital leva a pensar na figura da Princesa Izabel e na assinatura da Lei Áurea que aboliu a escravidão no território brasileiro, encerrando um ciclo de exploração para abrir um ciclo de exclusão; a brancura do muro alude à alvura dos uniformes médicos e à assepsia da medicina tradicional; mas a presença de uma pichação sobre a superfície limpa do muro registra um gesto de revolta e de insatisfação de uma voz que permanece sem ser ouvida, abafada no gueto, e por isso cria ruídos no espaço público.
Em Tabuleiro Dalton Paula faz uso de seu próprio corpo colocado em situação ritualística, como é frequente em muitos de seus trabalhos em fotografia e em vídeo sustentados por ações performáticas. O artista enfrenta o espaço público com o torso nu (assim como os escravos eram colocados no tronco a fim de receberem punições exemplares) e com a cabeça raspada; coloca-se voltado para o muro e atrás do tabuleiro, precariamente construído com engradados de cerveja cobertos com sacos plásticos costurados, sobre o qual estão depositadas ervas medicinais, em grande quantidade e diversidade. Assim, na fotografia, o artista aprece como se estivesse vestido com uma estranha indumentária de baiana, imagem que surge da forma do tabuleiro encaixada no seu corpo. Colocando-se entre os tratamentos ortodoxos da medicina oficial, de matriz branca, e os elementos da medicina popular, de matrizes africanas e indígenas, o artista também se coloca entre a magia e a ciência. Há em seu gesto a simplicidade do vendedor de rua, ocupação exercida há séculos pelos negros, consideravelmente após a abolição, e ainda hoje praticada na figura do camelô.
Unguento (2015) agrava os processos de ironia contidos na operação de amansamento de senhores empreendida por Dalton Paula. Como a obra anterior, o vídeo possui um caráter documental, pois foi realizado tendo um trabalho de performance como base. Trata-se de uma intervenção na cidade de Lençóis, interior da Bahia, realizada durante a Mostra OSSO Latino-americana de Performances Urbanas.
Nesta obra o artista surge, também sem camisa, caminhando pelas ruas e segurando uma garrafa vazia, uma garrafa de cachaça 51 e outra garrafa de cachaça de cor amarronzada (metáfora da pele negra), um almofariz e um ramo de erva-da-Guiné. Senta-se no pavimento de uma rua, tendo ao fundo as paredes e portas verdes de uma casa qualquer, e dispõe a sua frente o conjunto de objetos. Inicia então um ritual de ações que ao seu fim produz uma perigosa substância. Após vendar os olhos – ato que implica na perda de contato com o visível para abertura de contato com o invisível, num transe místico de encontro com arquétipos, entidades e fantasmas, derrama cachaça marrom à sua volta e começa a maceração da erva até triturá-la; em seguida sacode bastante a mesma garrafa de cachaça e depois a quebra no chão a sua frente; recolhe os cacos de vidro e os coloca no almofariz para serem macerados com a erva; quando a mistura está bastante moída, ele a introduz dentro da garrafa vazia e finaliza a garrafada acrescentando a cachaça 51 sobressalente, que durante sua ação foi aberta, servida e furtada por um bêbado de rua que casualmente se agregou à situação.
De todos os trabalhos de Dalton Paula que foram realizados no espaço público, Unguento é o que mais sofre intervenções de elementos que transitam pela rua, como pessoas, animais, veículos, sons, falas, ruídos. Mas a intervenção espontânea do bêbado potencializa ainda mais a ação do artista, pois no sentido plástico acrescenta à imagem do vídeo um contraste cromático de intensa energia, e no sentido poético conceitual dilata o significado da cachaça como símbolo e como matéria ao mesmo tempo em que revela sua ação nos corpos individual e social. O uso da cachaça remete ao ciclo da cana-de-açúcar sustentado pelo trabalho escravo no país. A bebida é conhecida no Brasil desde o Séc. XVI e ao longo do tempo quase sempre fora objeto de preconceito social, considerada como bebida das classes mais rebaixadas da sociedade, consumida por pobres, negros, índios aculturados e marginais; inferiorizada, a pinga foi tida como bebida da ralé, alimento do vício e da degradação do pária, daquele que vive longe dos direitos de cidadania, abandonado à própria sorte ou azar, tal como o bêbado que adentrou na performance atraído pela garrafa de 51.
O título da ação, Unguento, tem origem nas pastas utilizadas desde a antiguidade pela medicina popular para tratamentos de diferentes enfermidades. Na verdade, durante sua performance, Dalton Paula cria uma garrafada. Alternativas adotadas para driblar a carência de acesso aos meios da medicina tradicional, as garrafadas são bastante utilizadas pelas populações interioranas, rurais e pela camada urbana de baixa renda, seus receituários são antiguíssimos e se baseiam em conhecimentos fitoterápicos herdados dos negros e dos índios, e geralmente são feitas da mistura de ervas conservadas em cachaça. Porém, em vez de produzir um remédio capaz de aliviar e curar, o artista cria uma garrafada para produzir sofrimento, hemorragia interna e morte, e desta maneira atualiza a figura ancestral do sacerdote de candomblé que manipulava as plantas pra criar medicamentos/venenos, conforme a necessidade de amansar o senhor, ou dele se vingar.
A cachaça, a erva-da-Guiné e a garrafada são elementos que estão presentes também na instalação Paratudo (2015), obra homônima da marca de bebida alcoólica produzida com uma mistura de raízes amargas e cujo rótulo exibe a figura estilizada de um índio norte-americano. A obra, realizada na residência Imersão em (território) Olhos d’Água, interior goiano, assemelha-se a uma armadilha: é constituída por uma corda que pende do teto em nó de forca, do qual está dependurado um molho feito com uma garrafa de Paratudo e treze garrafadas de cachaça com distintas partes da erva-da-Guiné, o que confere diferentes tonalidades às bebidas; cada uma das garrafas está envolvida por uma rede de tarrafa, feita com linha de costurar couro, e assim elas são ajuntadas e presas à forca, como um corpo coletivo. A cadeia de punições latentes em Paratudo (suspenção, encerramento, finalização, extirpação) faz lembrar que nos quadros de violência dos períodos colonial e imperial, além das torturas impingidas aos escravos, havia a pena de morte dada aos revoltosos mais renegados e aos criminosos mais violentos, e que o enforcamento era o método adotado para a execução pública do condenado, num espetáculo de crueldade patrocinado pelas autoridades, tal como aconteceu com Tiradentes. Apesar da pena de morte ter sido abolida no Brasil durante o Segundo Império, a imagem da forca ainda persiste no imaginário do terror que assombra o presente.
Os últimos trabalhos apresentados por Dalton Paula são dois conjuntos de pinturas executadas sobre capas de dezenas de exemplares das antigas coleções de enciclopédias Barsa e Ciência e Futuro. Nascida no Séc. XVIII da reunião do conhecimento filosófico dos iluministas franceses, a noção de enciclopédia banalizou-se durante o Séc. XX nas mãos da indústria cultural que passou a produzir coleções de livros, contendo farta justaposição de verbetes tão variados quanto superficiais, avidamente consumidas pelas classes médias. É sobre a materialidade e a história desse suporte que o artista intervém sobrepondo outra narrativa. Dispostos lado a lado, em pé ou deitados, formando grandes sequências, os livros enquanto objetos não são alterados apesar de terem sua função suspendida. A visão da lombada, uma nesga do vermelho da capa revelada no interior da superfície da pintura, a espessura das páginas fechadas negando a tradicional bidimensionalidade atribuída ao meio, as memórias impregnadas no corpo da publicação, são aspectos que o artista sabe considerar e potencializar plasticamente.
O primeiro conjunto, intitulado Retrata Maria (2015), é como uma biografia formada por uma série de quarenta e cinco pinturas inspiradas em fotografias, cedidas por uma amiga que é militar, e representam cenas do cotidiano, do ambiente de trabalho, das viagens e das intimidades amorosas. O segundo conjunto, Retrata Rosana (2015), é baseado em fotografias de performances realizadas por artistas mulheres e por uma travesti que é personagem/obra criada por um artista do sexo masculino; de certa maneira direciona a leitura da performance para um campo histórico em que atuava como oposição e resistência às leis dos senhores do mercado de arte, que a tinham como categoria subversiva e sem interesses comerciais. Ambos são enformados pela ideia de empoderamento feminino, e alertam para que não nos esqueçamos de que também as mulheres necessitaram (e ainda necessitam) amansar seus senhores.
As cenas pintadas por Dalton surgem, no primeiro conjunto, da apropriação de registros da vida de outro, de imagens carregadas pela banalidade cotidiana e pela afetividade das recordações, enformadas por linguagem doméstica e sem cuidados de ordem estética. Numa reflexão sobre alteridade, o artista traz o outro para sua obra, e faz da imagem qualquer de um momento da vida de uma pessoa comum motivo para a capa da enciclopédia. Ao transferir a imagem fotográfica para a pintura seleciona alguns elementos da imagem original e subtrai outros, reinterpreta as situações de enquadramento, luz e cenário. Ao contrário da maioria dos trabalhos feitos por artistas que partem da fotografia para realizar pinturas, a obra de Dalton não guarda resquícios da fotografia original, pois a imagem é transformada por um gesto forte, mas administrado, que presta tributo à tradição expressionista. As transformações são muitas: a começar, o artista transforma a cor da pele de todas as pessoas que lhe forneceram fotografias, de brancas passam a ser representadas negras; as características fisionômicas se dissolvem num modelo formal; os olhos e os narizes são pintados de dourado, cor da qual emana uma energia sagrada que ressignifica os sentidos da visão, do olfato e do paladar – quando duas bocas douradas se encontram num beijo; o modo como trata o fundo de suas pinturas, sempre em tonalidades azuladas, esverdeadas e acinzentadas, guarda relações com a estética dada aos fundos dos tradicionais retratos pintados a partir de fotografias retocadas, e que são tão comuns no nordeste e nas residências dos subúrbios brasileiros; as sequências e ladeamentos das pinturas estabelecem conexões e criam uma nova situação visual da qual se abrem novas e inquietantes narrativas.
Por fim, ao concluir a reflexão sobre os trabalhos de Dalton Paula exibidos nesta exposição, atento para a necessidade de perceber que ele ao falar de traumas do passado encontrou uma forma de tratar dos problemas do presente, e convido o leitor a se inquietar e se perguntar: quem são os senhores de agora? O que eles fazem? Onde estão? O que representam? Porque precisam ser amansados? Quais são os métodos de amansamento? Quem são os amansadores? O que a arte tem a ver com o amansamento?
Goiânia, agosto de 2015.
¹ Sem autor. Memoria sobre o commercio dos escravos: em que se pretende mostrar que este trafico he, para eles, antes hum bem do que hum mal. Rio de janeiro; Typ. Imp. E Const. De J. Villeneuve e Comp.; 1838; Pág. 7. In Brasiliana Digital USP – Biblioteca Ex Libris José Mindlin.
² REIS, João José. Domingos Sodré, um sacerdote africano: Escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do Século XIX. São Paulo; Companhia das Letras; 2008; Pág. 152.