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E um Terremoto Sereno e Imperceptível Arrasou a Cidade...- Marcio Pizarro Noronha

I

O debruçar-se sobre o mundo da cultura popular, das tradições, das relações interétnicas, é de fundamental importância para o estudo crítico da arte na contemporaneidade. O extenso, difícil e nebuloso terreno da arte contemporânea vêm sendo circunscrito por campos de experiência que ultrapassaram em muito as suas fronteiras tradicionais e seus processos de legitimação. Assim, questões que se mantêm no reino da insuficiência da resposta exigem um trabalho sobre o objeto. Explorar o reino da constituição dos objetos cognitivos é traçar perguntas e, sistematicamente, promover uma crítica das fontes e dos procedimentos que constituíram o contemporâneo, gerando outras leituras e outros universos de compreensão. Na última década questões que haviam sido enunciadas como formas de engajamento ético no ambiente artístico se transformaram em parte interessada e interessante dos meios e dos modos de produção. Isto e mais a incorporação de novas geografias nos permitem uma observação mais precisa da constituição do objeto de arte no seu modo relacional com o mundo dos acontecimentos. Não se trata da noção relacional de Bourriad, como pretenso paradigma do fazer artístico por meio de relações, mas do modo como estas relações constituem novos objetos e estes passaram a redesafiar e redesenhar relações com o plano da realidade. Quando iniciamos este projeto curatorial, numa parceria Sé, Maria Montero, Dalton Paula e eu, Marcio Pizarro Noronha, nossa perspectiva era a da ascensão da obra na manutenção da qualidade dos princípios de relacionamento com o seu mundo instituinte, da anterioridade da obra, da não perda de todos os acontecimentos que pululavam ao nosso redor, na forma dos diálogos, do projeto, da feitura, da realização e da produção, num circuito econômico e simbólico ampliado.

 

II

Dalton Paula me chamou a atenção para um modo peculiar de transitar na travessia entre as linguagens sem a urgência de uma hiper-relevância e de uma revelação em torno das mídias por ele utilizadas. Sua produção ainda toda ela de caráter recente – um círculo que envolve um período próximo a cinco anos de trabalho – não tinha como foco a mídia. Mas ele era capaz de nos fazer voltar a atenção para a exigência do acontecimento e a mídia que dele melhor revelaria o estado. Sua trajetória, iniciada na pintura, expandiu-se para os reinos da fotografia, do vídeo e das diferentes formas de pensar a performance, retornando à Pintura, como modo de mostrar ao leitor-observador-fruidor o quanto somos exigidos em termos de velocidades e imagéticas distintas, para a compreensão da realidade no tempo presente. Ampliar as mí- dias envolve revelar a própria multiplicidade da interpretação do artista e seu breve exercício em teorizar o próprio objeto em constituição – a arte. Desde o início, o cuidado nesta aproximação, me fez optar por um método comparado de trabalho, permitindo assim abrir, em conjunto com o meu vivido, ao frequentador de sua produção, modos de pensar relações entre tempo-espaço, velocidade, sensibilidade aos modos de ver, viver e conviver com a cidade, com a negritude, com as organizações simbólicas, com o pensamento da tradição.

 

III

Dalton Paula revela um pouco do enigma da descronização causada pelas imagens na sensibilidade humana. No esforço e na potência do presente seu trabalho é efetivamente capaz de condensar mundos e diacronias, de temporalidades longas e distendidas a tempos curtos e cotidianos. Assim, ele aponta para as assimilações e confrontações que ocorrem no processo de formação acadêmica e de inserção no mundo das artes, na sua obsessão por princípios de formalização, de instauração de visibilidades puras e estilização, reveladores da presença oculta dos grandes modelos do pensamento clássico. A tirania da perspectiva é por ele adotada e revirada no sentido de sua afinidade com as lógicas rítmicas do desenho, do traçado e dos planos constituídos nas matrizes da cultura popular e, mais especialmente, em suas origens africanas, de linhas e simetrias. A antropofagia do mundo de Dalton Paula é a releitura de uma incorporação e de uma encarnação. Não basta devorar o outro. É preciso encarná-lo. É assim que seus trabalhos me revelam as silenciosas e caudalosas correntes entre diferentes mundos e tradições, para adensar o mítico e realidades étnicoculturais ampliadas.

 

IV

Ao curador cabe – enquanto historiador e crítico – o pensar na arte, nas imagens e através da janela que elas se tornam. Assim, imagens são sintomas, pois apontam justo para a carnalidade daquilo que não pode se tornar um pleno signo significado, o apontamento de uma significação estabilizadora. No mundo produzido por Dalton a estabilidade da forma, da simetria, da composição, do colorido, se confronta com significados que tendem à rarefação, dando conta de apontar para os estados putrefatos e os rastros dos nossos deuses, dos nossos acontecimentos, do nosso cotidiano. É assim a sua potência. Enunciar em imagens uma invisibilidade ou a presença de um fundo devorador que aponta para uma idéia de que nenhum estado, mesmo o da procura da cor pura, prevalece. O sintomal em Dalton Paula é transportar dispositivos de pintura para o universo da fotografia, do vídeo e da performance, perturbando a temporalidade – na combinação de exatidão e de velocidade de registro e documentação – com uma instância enigmática, do signo-sintoma que é caracterizador do estado e do fazer da pintura. Dalton Paula não é videasta ou performer ou fotógrafo. Ele apenas subverte e contamina estas mídias adequadas para a sua busca infinda de linguagens capazes de representar o campo dos acontecimentos e revelar a heterogeneidade imposta pela técnica e pela tecnologia nos regimes visuais do nosso tempo. Há um derramento de estados nestas fotografias, vídeos, performance e atos de pintura nelas contidos. Isto nos permite viver, intensificar e ressaltar a comoção e a dimensão pática – afetiva – de tudo aquilo que ele nos mostra e faz ver sem desejar significar.

 

V

E um terremoto imperceptível e sereno arrasou a cidade…

“PORQUE A AMADA ENTRASSE NUM AUTOMÓVEL E O AUTOMÓVEL SAÍSSE ROLANDO, UM TERREMOTO IMPERCEPTIVEL E SERENO ARRASOU A CIDADE, AS CASAS, OS JARDINS, OS CÉUS, E OS PÁSSAROS CONTINUARAM VOANDO MAS MORTOS.” (BERNARDO ÉLIS)

As coisas, como no poema, continuam aqui. Extáticas. Extásicas. Mas apontam para sua dimensão de morte e de mortífero. Seus objetos estão aprisionados ao tempo e às miríades e retalhos de presentes simultâneos que se mantêm contaminados por dimensões enigmáticas e antigas. São bolsas voadoras. São botões dourados. Santos. Demônios. Comunicação ou receptáculo. Imagens não são apenas complexas por poderem formar um mapa sintético da densidade do campo narrativo. Imagens são complexas por se distenderem e atuarem em muitos e muitos tempos… Ao fim, há uma chuva que irá cobrir friamente de branco os morros longes feito um fantasma bondoso. Dalton Paula faz o gesto, ele próprio do artista como fantasma que povoa e evoca zonas mortas da cidade. Ele aparece. Ele é uma aparição no campo, na paisagem, na cidade antiga, na cidade nova. Ele opera com sua ação, com sua intenção – com sua vontade artística – tal como um Élis visual, produzindo a carícia gelada, que afaga e provoca a cidade quieta, a cidade silenciosa, a cidade oculta, a cidade obscura, a cidade em sua margem e marginalização. Corpo, corpo e estado de contrição nos olhos fechados fazem da atuação performática uma meditação. Ele vai realizando e desvelando nas composições a potência da arte ainda hoje para com seus gestos precários de mão defunta borrar de imagens o recalque e o silenciamento de tantos e tantos atos de opressão. E, finalmente, como profecia de Élis, poderá finalmente, “molhar o recolhimento místico das grandes árvores”.

*Marcio Pizarro Noronha Doutor em História e Doutor em Antropologia. Professor e pesquisador na UFG atuando no PPGH-FH e na FEF. Docente de História, Teoria e Crítica de Arte, Arte e Estética, Arte e Psicanálise, História e Teoria Interartes. Psicanalista. Realiza atividades de curadoria para exposições, grupos de performance, seminários, colóquios.