A obra criada por Dalton Paula durante os últimos seis anos promove um questionamento no interior da história da escravidão negra, desenvolvida com o tráfico de povos africanos para o continente americano após seu descobrimento. Vigorante no Brasil do século XVI ao XIX a mão de obra escrava sustentou o desenvolvimento dos ciclos econômicos do país desde os primeiros anos de colonização até quase a chegada da República. Foi empregada na extração de pau-brasil, na produção de produtos agrícolas como cana-de-açúcar, tabaco, algodão e café, na extração de ouro e pedras preciosas, nas atividades domésticas e nos serviços urbanos. Por mais de três séculos um enorme contingente de africanos viveu no país em condições degradantes e sofrendo violência extrema, até que a Lei Áurea encerrou o período de escravidão. Entretanto, a abolição não resolveu o problema da população negra, pois foi seguida pela ausência absoluta de políticas públicas destinadas a dar direitos e a integrar os antigos escravos na sociedade; assim, como consequência, se formou o grave e injusto processo de exclusão social e de perseguição racial, fundado na rígida hierarquia de classes e nos preconceitos enraizados na mentalidade escravagista, que inferiorizava africanos e seus descendentes – mentalidade atrasada que ainda vigora em segmentos elitizados da sociedade brasileira contemporânea.
Nem a reconhecida importância da participação dos negros na formação da rica cultura e nem sua contribuição para a singular produção artística brasileira, desde o período colonial até o momento, nem mesmo a teoria da miscigenação e da pacificação de atritos raciais postulado por representantes das ciências humanas responsáveis, no século XX, por desvendar a identidade do país, conseguiram desfazer diferenças e desmanchar os conflitos raciais encravados na estrutura do Brasil. Os negros ainda vivem segregados, ocupam as beiras e vivem sem acesso aos bens da cidadania, continuamente violentados pelo estado e pela sociedade.
Como um artista que assume sua negritude Dalton Paula trabalha com lucidez os problemas causados pela escravidão, considerando os contextos do passado e do presente, ampliando seu território de investigação, redimensionando o sentido da arquitetura em relação ao corpo, revendo lugares e personagens e se contaminando com narrativas extraídas do subterrâneo da história, seja do país seja de fora dele. Ao elaborar seus trabalhos lança mão de diferentes fontes imagéticas e de diferentes procedimentos de pesquisa e realização, emprega distintas categorias visuais e instaura por meio da plasticidade e do conceito da obra uma crítica negativa sobre os discursos oficiais, desestruturando representações e tensionando as relações de trocas e de apropriações acontecidas entre negros e brancos, escravos e senhores, dominados e dominadores.
A exposição Rebelião Negra apresenta um recorte de oito obras realizadas em diferentes períodos e com distintos suportes: pintura, objeto, foto-performance e vídeo-performance, com a intenção de oferecer leituras tanto da diversidade de linguagens e de procedimentos artísticos quanto da poética profundamente política e questionadora configurada pelo artista, compromissada com sua vida, com o revisar da historiografia, com a potencialização do excluído, com a cura dos traumas da escravidão. Deseja mostrar como Dalton Paula desenvolve um trabalho de fôlego que dilata a tradição política, ética e social da arte brasileira tocando em assuntos contundentes e necessários de serem refletidos na atualidade, aqui e alhures.
Vasculhando a memória coletiva e buscando as fontes do passado, a pintura A Rede (2016) atualiza a representação extraída de Jean-Baptiste Debret (1768-1848) publicada no II tomo de Viagem Pitoresca e Histórica ao Interior do Brasil (1834-1839) – dedicado ao registro da vida cotidiana, do trabalho e dos castigos vivenciados pelos escravos, e que ressalta a participação fundamental do negro na formação social e cultural do povo brasileiro durante o século XIX. Da representação original de Debret Dalton Paula extrai alguns personagens: o senhor que era conduzido no interior da rede; duas crianças escravas; um cachorro que acompanha o grupo. Mantem apenas dois escravos segurando uma madeira onde está dependurada a rede vazia, porém inverte suas direções: um segue à direita e o outro à esquerda, criando uma situação que impede o deslocamento, gerando um travamento no exercício da função, desobrigando do trabalho e paralisando a cena. Também abandona a paisagem e representa as figuras no ambiente interior de uma sala doméstica, em cuja parede encontra-se uma prateleira com três garrafadas de ervas e cachaça – materiais que o artista utiliza em vários outros trabalhos.
Obra que atua sobre veículos do conhecimento, Retrata Divina (2015) é um conjunto de nove pinturas realizadas sobre capas de enciclopédias. As figuras são baseadas em fotografias recolhidas pelo artista junto a uma colega de trabalho, uma mulher branca e anônima. Imagens triviais de cenas amorosas, de situações profissionais e de lazer são reformuladas por uma série de expedientes adotados por Dalton Paula: supressão dos fundos que registravam os contextos originais; seleção de elementos específicos que desfaz a narrativa primeira; enegrecimento da personagem; sequenciamento de cenas não lineares; fusão de expressionismo e pintura popular. Existe a ironia de alterar a cor da pele e de colocar uma negra num local em que nunca esteve antes, a capa das enciclopédias produzidas pelo mercado editorial de massa responsável pela difusão de um conhecimento ao mesmo tempo amplo e raso às parcelas medianas da sociedade brasileira. A figura da mulher negra, duplamente excluída pelo racismo e pelo machismo, triunfa sobre um extrato do conhecimento formulado por séculos de teoria eurocêntrica, branca, masculina.
O uso do próprio corpo é uma situação que marca bastante a produção de Dalton Paula. Seu corpo negro, fora dos padrões estéticos da sociedade de consumo, geralmente de torso despido, com vendas nos olhos ou de olhos fechados é recorrente em propostas de performance em estado cru e nos trabalhos de foto-performance e de vídeo-performance – que se dão enquanto ações que ocorrem distantes da presença do público, apenas para as objetivas de câmaras de fotografia ou de vídeo posicionadas fixamente; são obras que não podem ser consideradas autônomas da performance, portanto são híbridos que transitam entre as condições de registros e de meios de formalização da pós-performance.
Máscara (2015) é um objeto que remete ao corpo do artista, uma vez que foi elaborado para a realização de sua última foto-performance, mas que não chegou a ser exibida ao público. Destinava-se a cobrir a cabeça e o rosto, assim como uma vestimenta de orixá. É um objeto simples e muito simbólico, constituído por centenas de pequenos frascos de vidro de remédio contendo mistura de cachaça com folhas, raízes, galhos e sementes da erva-da-guiné (Petiveria alliacea), conectados em uma rede executada com fio de costurar couro. São pequenas garrafadas, poções capazes de curar ou de matar, heranças conservadas pela resistência e pela sabedoria dos herbolários negros.
A erva-da-guiné tornou-se conhecida popularmente como “amansa senhor”. Outrora foi utilizada por escravos sacerdotes que manipulavam e distribuíam poções de ervas venenosas como armas silenciosas para ataque aos senhores, feitores e inimigos. O envenenamento contra a tortura. O pó de sua raiz fazia parte do receituário amplamente usado pelos que agiam contra a vida de seus carrascos, e seus efeitos eram agressivos, potentes e letais: letargia, superexitação, insônia, alucinação, convulsão, paralisia da laringe e morte*.
Na rebelião promovida pela obra de Dalton Paula, a erva-da-guiné aparece em diversos momentos apontando para multiplas leituras: símbolo de resistência à opressão e à dominação; meio de defesa e de ataque; cura das chagas históricas da escravidão; folha de orixá e elemento sagrado de proteção.
Na vídeo-performance Unguento (2015), realizada diante do antigo mercado de escravos de Lençóis – cidade da Chapada Diamantina (BA) fundada no ciclo do ouro – Dalton Paula desenvolve o ritual de feitura de uma estranha garrafada feita da mistura de cachaça com cacos de vidro de outra garrafa de cachaça macerados com erva-da-guiné. Bebida extremamente popular, a cachaça possui registro no Brasil desde o século XVI e o uso feito pelo artista remete tanto ao ciclo da cana-de-açúcar, sustentado pela mão de obra negra, quanto ao preconceito social que associa cachaça às classes mais rebaixadas da sociedade, aos negros, índios, párias e bêbados abandonados às mazelas. Unguento é o nome dado às pastas empregadas desde a antiguidade para tratar distintas enfermidades. A garrafada possui a mesma finalidade curativa sendo largamente utilizada pela população em misturas de cachaça com inúmeros exemplares de ervas, raízes, folhas, cascas, seivas e animais. Porém, no duplo processo de cura e de defesa o artista acaba por produzir uma garrafada capaz de matar por hemorragia interna, atualizando a imagem do arcaico sacerdote que medicava ou envenenava de acordo com a necessidade de amansar ou matar o senhor.
A erva-da-guiné também é utilizada na vídeo-performance Implantar Anamu (2016), realizada durante residência em Habana Vieja, Cuba, diante do muro do forte La Cabaña, grandiosa construção do século XVIII projetada pelos espanhóis e edificada pela mão escrava, que se impõe como símbolo da arquitetura do poder e do controle punitivo. O forte anteriormente fora usada como base militar e como prisão de tortura e hoje funciona como museu – também uma instituição de poder que trabalha continuamente com critérios de seleção e de exclusão não só da linguagem estética, mas de aspectos de ordem política, social, gênero, raça. Implantar Anamu é um trabalho que distende a pesquisa de Dalton Paula com a erva-da-guiné e com os procedimentos de triturar objetos. Mergulhado na repetição de um gesto obsessivo e cego Dalton Paula leva seu corpo à exaustão, distendendo o tempo da ação de macerar no almofariz de metal alguns vasos de cerâmica, até transformá-los em pó, expressando uma vontade de devolver a terra aquilo que a ela já pertenceu e que a cultura humana extraiu. A longa duração do trabalho remete à lentidão da vida dentro de uma prisão, onde os dias não passam, mas se arrastam. Dalton Paula realiza um ritual para triturar o que antes fora moldado e plantar nas ruínas da destruição o antídoto contra a opressão e o subjugo, plantar na mescla de pó e cacos de cerâmica e terra fértil da ilha uma erva-da-guiné, chamada em Cuba de anamu. Planta que age como elo conectando as narrativas dos negros escravizados no Brasil e em Cuba e por meio da qual o artista questiona poderes e reposiciona o lugar de fala e o volume da voz do negro diante do passado, do presente e do futuro.
Desprovida de categoria e acoplando performance, vídeo e fotografia a obra Coronel Castelo Negro B (2013) também se confronta com a conjunção dos poderes militar e político. O título parodia o nome do General Humberto Castelo Branco (1897-1967), principal agente do exército no Golpe de março de 1964 e primeiro presidente da ditadura militar, responsável por inaugurar o período de trevas marcado pela suspenção dos direitos políticos, pela repressão aos movimentos de esquerda, pela perseguição aos opositores e pela censura à livre expressão intelectual e artística. Dalton Paula cria um autorretrato no qual funde referências ao exército e à polícia militar; se apropria das insígnias da patente de coronel, as três estrelas gemadas, e as costura na pele de seu ombro desnudo. O local da cena é uma pastagem verdejante onde comanda o arcaico e vivo coronelismo rural, administrando os latifúndios e o agronegócio com a força política das oligarquias, provocando incontáveis conflitos pela propriedade e uso da terra. Deste local Dalton Paula se apossa e em sua rebelião revira a história, assalta as patentes do poder e as conduz à memória dos ombros do desprovido de posses.
Nilo Peçanha (1867-1924) possuía origem pobre e por causa da cor de sua pele era chamado pejorativamente por seus opositores de mulato, embora negasse qualquer afro-descendência; mesmo com todas as condições adversas para pessoas de sua classe avançar em posições sociais tornou-se um político importante, e chegou até a presidência do país na passagem da primeira para a segunda década do século XX. Fato admirável numa sociedade que havia abandonado oficialmente a escravidão somente há vinte e um anos. Seu nome intitula a foto-performance em que Dalton Paula posicionado de frente a Esplanada dos Ministérios, em Brasília, exibe costurado na pele de suas costas o brasão da república, símbolo maior do poder do Estado, introduzindo a indagação sobre como um negro pode se apropriar dos instrumentos de governo.
O vídeo O batedor de bolsa (2011) aponta a violência contida nos processos de exclusão social e nos preconceitos raciais da sociedade, pelos quais formou-se uma imagem deturpada do criminoso e do marginal, associando marginalidade às pessoas de pele negra e de origem humilde, àqueles que vivem muitas vezes desprovidos de bens essenciais, mas que nem por isso seriam capazes de roubar. O racismo, hoje criminalizado, tem seu lastro entranhado no comportamento brasileiro. O trabalho registra a performance feita no espaço público de uma rua em bairro de periferia, tendo como fundo um muro com pintura branca desgastada que contrasta com a pele negra do artista e com a cor preta da bolsa. Sua ação é econômica e rápida: tendo nas mãos um cassetete de madeira (objeto que também é uma arma utilizada pela polícia), tenta bater em uma bolsa feminina suspensa no espaço acima de sua cabeça. Cegamente golpeia o ar com o objetivo de surrar a bolsa; insiste até se cansar. A bolsa encaminha para outros significados como a bolsa de valores pecuniários onde circula o fluxo do capital internacional, e que está também acima de grande parte da população segregada, ou como objeto de guarda dos distorcidos valores morais e éticos das classes médias urbanas. Assim ele revive a situação de preconceito que sofrera quando criança, denuncia a violência racial e ao mesmo tempo expurga a desmedida associação, feita geralmente por mulheres brancas, da imagem de um menino negro e pobre à figura do marginal de rua, autor de pequenos furtos conhecido como pivete, trombadinha ou “batedor” de carteira ou de bolsa.
Goiânia, agosto de 2016.