Nasci e cresci em São Paulo, homeopático, curador. Apesar de todas as controvérsias com a eficácia da homeopatia e a sua tumultuosa história desde que foi inventada em 1796 por Samuel Hahnemann na Alemanha, meus pais decidiram levar eu e o meu irmão à doutora Percy. Homeopata, pediatra.
Uma das bases fundamentais da homeopatia é a máxima similia similibus curantur, do Latim, que significa “semelhante pelo semelhante se cura”. A partir disso se entende que o tratamento, ou a Cura, se dá pela diluição e dinamização da mesma substância que produz os sintomas da doença em uma pessoal saudável. Hoje, não mais visitando uma pediatra, mas trabalhando com curadoria, eu não sou mais tratado homeopaticamente, mas acredito que essa premissa tenha modelado o meu modo de pensar o verbo curar.
O trabalho de Dalton Paula, Santos Médicos de 2016, traz para a capa de livros de medicina e enciclopédias, cenas de sessões íntimas e inquietantes. Nelas, corpos interagem de maneiras diversas, sob regras incompreensíveis mas de extrema familiaridade. Hierarquia e poder são personagens invisíveis e mais-que-presentes entre esses corpos que se tocam e se observam de um modo que só a desculpa da perspectiva médica pode explicar. E tudo isso acontece não só no campo pictórico, mas a própria base, a estrutura dessas cenas que segura as imagens são livros e enciclopédias de medicina. Os corpos pintados agem de acordo com uma história escrita, um comportamento transformado em modus operandi que justifica a interação de corpos que não se conhecem.
O trabalho de Dalton Paula nos lembra que a Cura só acontece depois da definição do que é benigno e maligno, e mais do que isso, que alguém possui o poder de determiná-los. Historicamente, essa premissa da medicina não passou batido por certos grupos que a usaram como ferramenta de controle e subjugação de corpos menos desejados, principalmente como forma de acumulação de poder e capital. Entre outros, a caracterização do negro como portador dos males da sociedade e a diferenciação social do médico da corte e o curandeiro no Brasil colônia pode ser visto como um exemplo concreto, ou a caça às bruxas na acumulação de capital por meio da eliminação do corpo rebelde na transição para o capitalismo, ou a destruição dos arquivos do Institut für Sexualwissenschaft pelo nazismo em 1933 em Berlin fundado por Magnus Hirschfeld (1868-1935). Infelizmente a lista de exemplos em que a idéia de Cura foi usada como modo de expurgação de corpos representando o mau dentro de uma comunidade é extensa demais.
Mais recentemente, no Brasil, após o pronunciamento do futuro presidente eleito Jair Bolsonaro criticando a existência de mais de 8.000 médicos cubanos que atuam em diversas áreas remotas do Brasil, o governo cubano decidiu retirá-los do país. A grande maioria das áreas afetadas pela saída desses profissionais, são áreas geograficamente mais isoladas e com concentração de pessoas com menor renda. A Cura, nesse movimento político desastroso e irresponsável do novo futuro governo brasileiro, acontece ao inverso do que parece: a Cura como modo de cuidar e se responsabilizar pelo bem estar de um povo se ausenta, enquanto a Cura como eliminação de uma parte da população de menor renda em áreas remotas acontece em razão dessa própria ausência. É difícil aceitar que esses dois lados da palavra estão inegavelmente presentes na história e no presente do Brasil.
O trabalho de Dalton Paula faz o difícil trabalho de memória, de nos oferecer imagens cuja familiaridade nos conforta pela representação de corpos já tão ausentados na história brasileira e que ao mesmo tempo cuja história, violentamente diagnosticadas nesses mesmos corpos, dói. Mas será essa dor um sintoma da premissa homeopática do “semelhante pelo semelhante se cura”? Será possível que diluindo e dinamizando esse passado, é possível algum dia extrair a Cura para essa doença que gera a eliminação de corpos indesejados com o fim de acumulação pessoal de privilégios?
Hoje em dia, a homeopatia não ocupa um lugar de respeito na medicina ocidental. Seus efeitos são comparados com os mesmos efeitos de placebos. Ao mesmo tempo, o sentimento atual no Brasil é de que a existência de qualquer solução de cunho igualitário para os problemas do país, está cada vez mais diluída e obscura. Talvez, em momentos assim, quando encontramos algum desses placebos, seja melhor que criemos fé a partir deles, porque essas soluções, mesmo tão diluídas, estão infelizmente se tornando cada vez mais difíceis de se encontrar.