O andar é lento: um homem sem camisa aparece no canto direito de uma tela. Um muro de tijolos coberto por pichações é cenário para seu corpo negro. Seus movimentos são vagarosos porque ele anda de olhos vendados sobre uma calçada congelada, empurrando, com dificuldade, um carrinho azul. Na cidade de Nova Iorque esse tipo de carrinho é usado por pedestres no dia-a-dia. Geralmente em bairros mais modestos, moradores utilizam esses carrinhos para facilitar a ida às compras, já que muitos deslocamentos na cidade são feitos através do uso de trem, metro ou ônibus. Moradores de rua também usam esses carrinhos para guardar seus pertences, já que eles facilitam o transporte de toda sorte de objeto, principalmente para pessoas de mais idade que sentem dificuldade ao andar.
No vídeo, o caminhar do homem é carregado de hesitação: ele parece mancar e segura um copo de papel, desses que encontramos em cafés de esquina, principalmente em redes globais como as que existem em Nova Iorque. A luz natural, fria, e o gelo no chão nos sugerem que a cena se passa durante um clima algo inóspito: vemos uma rua do Brooklyn, dias após uma tempestade de neve. Enquanto o homem empurra o carrinho, as rodas ficam presas nos resíduos da tempestade: geralmente, elas são camadas duras e acinzentadas de gelo, praticamente grudadas ao concreto da calçada. A cegueira temporária e o peito nu do homem falam de certa vulnerabilidade: é possível imaginar o ar gelado golpeando a sua pele.
Um corpo negro quando aparece no campo visual––que por si só é sempre comparado à branquitude como norma––é marcado por estereótipos. Tanto nos Estados Unidos, país em que a vídeo-performance foi criada, quanto no Brasil, país de origem do artista, o corpo negro é assolado por uma longa história de exploração e abuso: as imagens históricas da escravidão e pobreza são ainda dominantes no imaginário de sociedades como essas, que desde o século 16 participaram do sistema colonial e da escravidão das populações africanas. Sendo assim, um corpo negro, exposto como o que vemos nessa cena, está sujeito a uma série de interpretações e perguntas, como: “Para onde ele está indo?”, “Por que tem uma venda nos olhos?”, “O que ele carrega no carrinho?” A partir do vídeo, temos apenas a resposta para a última pergunta: é possível ver que dentro do carrinho o homem transporta tijolos e que o objeto parece ser uma fogueira ou chaminé––um elemento estático, que através da ação do artista se torna ambulante. Enquanto anda, e sem enxergar, ele derrama pedrinhas de incenso que leva num copo de papel. As pedrinhas caem na fogueira, o que gera fumaça, e inesperadamente, fogo.
Durante sua estadia de sete semanas na residência artística da AnnexB, no Brooklyn, o artista Dalton Paula viveu como um verdadeiro “New Yorker”, para se usar a expressão comum daqueles que vivem e trabalham nessa cidade global. God Bless You (Deus Abençoe) é uma vídeo-performance criada pelo artista, que ele usou como um exercício para compreender as experiências vividas em seu primeiro contato com a cidade de Nova Iorque. Tanto em sua prática em pintura, quanto instalação ou vídeo-performance, Dalton está interessado na questão da invisibilidade da população negra no campo visual e na arte brasileira. Para ele, a arte é um espaço de cura, em que a violenta exclusão dos corpos negros deve ser tratada. Em suas performances, surge uma figura que ele chama de “o corpo silenciado” que nada mais é que um personagem negro, que teve sua imagem esquecida pela história da arte, ou apagada no campo das representações visuais.
Dalton trabalha com simbolismos do imaginário popular brasileiro, muitos desses que passaram por um processo de embranquecimento de suas raízes africanas. Aqui, quando falo de “raízes africanas” não me refiro a uma ideia rígida de “raízes,” já que como o teórico Paul Gilroy diz, qualquer cultura está sempre em fluxo e símbolos e seus significados também estão sempre em transformação e negociação. No entanto, os símbolos que Dalton usa fazem parte de práticas culturais, muitas vezes religiosas, que foram trazidas ao Brasil pelas inúmeras populações africanas, mas que ao longo dos anos misturaram-se com elementos de outras práticas culturais e religiosas. Nesse processo de mestiçagem cultural (e também racial), algumas tradições africanas de cura entraram para o entendimento popular como “superstições”, tornando-se assim parte de uma ideia homogeneizada––e de certa forma também embranquecida––de espiritualidade. Se por um lado esse processo é “positivo”, pois de certa forma ainda permanece ligado às diversas culturas africanas que vieram ao Brasil, as referências africanas por vezes são representadas através de exotismos e essencialismos, isso quando não são comercializadas ou erradicadas pela branquitude como construção social.
A mestiçagem, que é tão preciosa aos brasileiros, tem também contribuído para uma ideia de nação que promove o “mito da democracia racial”, ou seja, a ideia de que, no Brasil, a igualdade racial já foi alcançada. É fato que a democracia racial deva ser desejada como um presente ideal, e possível. No entanto, a ideia ilusória da atual igualdade racial deve––e tem sido––combatida por grupos de ativistas negros e oriundos de outras “minorias” étnicas, já que tal ideia foi usada, por décadas, para camuflar certas disparidades: por exemplo, em pleno ano de 2018 sabe-se que o número de artistas negros atualmente representados por galerias no Brasil pode ser contado nos dedos.
A arte moderna no Brasil sempre usou o corpo negro, e principalmente o corpo da mulher negra e da mulher mestiça, como base para sua estética e teoria relacionadas, por exemplo, à Antropofagia. Ao mesmo tempo que esses corpos se tornaram exageradamente visíveis, o controle dessas representações visuais permaneceu nas mãos das elites produtoras da arte moderna, criando separações e mesmo silenciando, entre outras, as vozes de artistas e produtores culturais negros e de outros grupos étnicos.
Entender a arte brasileira como um lugar construído a partir dessa exclusão é, para Dalton, uma forma de abrir espaços de fala e negociação através de novas imagens e narrativas, que trazem à tona esses processos de verdadeiro emudecimento. Assim, assistir a God Bless You é como vislumbrar uma janela onde dois universos coexistem. O carrinho, o copo de café, o fogo, a fumaça, e o contraste desses elementos com o gelo são signos, de certa forma, específicos da vida em Nova York; por outro lado, os gestos e movimentos que o artista faz na sua curta caminhada pelo gelo criam uma justaposição entre o universo brasileiro e o estadunidense.
O andar dificultoso do artista entra em sintonia com o andar da população vulnerável de rua, principalmente daqueles que são idosos ou doentes. Em God Bless You o corpo negro performa uma ideia afro-diaspórica de vulnerabilidade, já que tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos são os corpos das minorias que devem lidar com imposta marginalidade. O uso das pedrinhas de incenso para produzir fumaça e fogo, de acordo com o artista, é um ato do universo afro-brasileiro de cura, que então passa a se comunicar com o universo da população afro-norte-americana. Sobre esse ato de cura, Dalton disse:
“Desde que cheguei em Nova Iorque, tenho pensado muito na ideia de proteção, especialmente proteção contra o clima frio. Colocar os tijolos dentro do carrinho foi uma metáfora para um abrigo, a ideia de levar sua casa com você para onde você for, como fazem muitos dos moradores de rua idosos que eu vi em Nova Iorque. Também há o aspecto da vida nos subsolos que me chamou muito a atenção: tudo se faz dentro do metro, além da fumaça que sai dele e vai para a rua. O copo de papel é também um símbolo do pedido de esmolas, ao mesmo tempo sendo um objeto comum da vida muito corrida, em que as pessoas comem ao andar e tudo é “to-go” (se leva para viagem). Por isso, usei o incenso como uma cura simbólica para esse espaço. Pensando assim em espaços de recuperação, de proteção contra a morte (pelo frio) e tendo como o fundo a parede de tijolo que serve como uma separação entre o público e o privado.”
A partir deste testemunho, percebe-se que não é por acaso que o “corpo silenciado” de God Bless You busca a cura através do corpo do pedinte, uma figura vulnerável que pede proteção, mas que também se prontifica a vencer obstáculos: nesse caso, as barreiras são tanto o gelo, quanto a parede de tijolos, que pode significar a exclusão e a marginalização trazidas pela gentrificação de bairros como o Brooklyn, em que os moradores mais antigos não conseguem mais viver devido à agressiva ação da especulação imobiliária.
De acordo com o artista, nas religiões afro-brasileiras, o fogo e a fumaça do incenso trazem limpeza e purificação espiritual: são gestos que criam um espaço de abrigo em meio às pequenas e extremas dificuldades do dia-a-dia, como a falta de proteção ao frio que pode levar à morte aqueles que não têm um teto. A delicadeza dos gestos desse corpo negro se opõe às representações estereotipadas––especialmente de marginalização e violência––que dominam o campo visual, por exemplo quando vemos retratados espaços como os das favelas brasileiras ou bairros segregados por raça nos Estados Unidos até meados do século 20. Ao invés de alimentar esses estereótipos, o corpo performático que aparece em God Bless You é corpo do sábio idoso, ou do sem-teto, que perambula pelas ruas das grandes cidades, quase sem ser notado, sem ser visto, ou escutado.
Há força e sabedoria na vulnerabilidade desse corpo que enfrenta e transcende obstáculos, seja o frio, ou a pobreza. São essas qualidades que criam um vínculo entre as vidas negras, ao redor do mundo, que continuam sendo constantemente atacadas. God Bless You passa a integrar o campo da visibilidade da diáspora africana: se torna uma imagem de cura, mas que também deseja se conectar à diversas vulnerabilidades através do Atlântico. Assim, o trabalho taciturno de Dalton Paula é como um grito silenciado contra o racismo e a xenofobia que têm servido de combustível para as ondas de extremismo político deste mundo. Para demolir esses muros aparentemente impenetráveis precisamos, sim, de muito fogo, mas talvez também seja preciso estarmos vulneráveis a verdadeiramente enxergar os outros e ouvir, com calma e cuidado, o que eles têm a dizer. Enquanto no Brasil grupos religiosos extremistas direcionam ódio e intolerância às práticas e religiões afro, o trabalho de Dalton nos aconselha compaixão. Seu andarilho silencioso nos oferece acolhimento e amparo, mas também nos convida a participar de um tipo “radical” de cura: a corajosa e persistente prática da diferença.