Goiânia, 24 de agosto. Estiagem de 2018
O meu reencontro com Dalton de Paula, no auditório da Faculdade de Artes da Universidade Federal de Goiás foi surpreendente, houve ali uma inflexão no tempo, na sua pretensa linearidade. Inflexão nó na garganta, encruzilhada das sensações, que ora se ancoram no abraço, nas lágrimas e no espanto. Dalton terminou sua fala e disse ser um instrumento desse campo de forças onde opera ética, estética e politicamente. Depois um estudante lhe perguntou se ele se reconhecia como artista-Exu, esse mensageiro, guardião das portas e entidade da comunicação. A isso a resposta foi apenas um grão de areia de Exu, com a segurança de nos reportar a prudência de sua mãe de santo, esse cuidado de evocar apenas porções desse axé-exu. Foi quando me ocorreu pensar Dalton como um artista cavalo-de-santo, essa dimensão tão material, carnal, esse literalmente veículo de forças e energias, esse corpo devir corporalidade-força dos orixás. E é para o artista-cavalo-de-santo, que envio aqui breves notas desse sentir-receber e fazer contato com Zeferina, as irmãs de Cosme Damião, Para tudo, os bodes, os ex-votos, o tatu e o jabuti.
Você um senhor, havia um tempo velho inscrito nos seus olhos, voz, gestos. Esse tempo que o corpo come para fazer casco e endurecer envergando. Esse tempo plasmado nas crostas do ipê e do jatobá. Do meu primeiro encontro com Dalton, há 5 anos, eu recém chegada da Bahia de todos os Santos de mudança pro Goyás, falando de poleiros e buscando assentamentos de sentidos aqui e ele também, recém chegado de lá, de uma imersão divisora de águas e terras. Éramos recomendados por amigos em comum, me disseram de Daltinho, esse modo diminutivo baiano, que significam na verdade um superlativo dos afetos. Ontem, a sucessão do tempo redemunhou outro sentido, e não se tratava mais deu um tempo chronos, e sim aikos essa temporalidade densa, incomensurável, que é pura sensação-duração, avessa à contagem.
Foi quando Dalton, aqui à imagem do cavalo de santo, mostrou a série “minha viagem à Nova York” e lá estavam o tatu e o jabuti como autorretratos anímicos e míticos. Uma densidade do tempo e das cascas e dos cascos transmutando em outra força. A força cosmopolítica, essa que tensiona o olhar euro-moderno-norte-humano centrado. Esses dois autorretratos cosmopolíticos escavam com o tatu um buraco no espaço, como túnel rumo ao centro do mundo. Lá onde ferve um magma, esse espesso caldo mineral testemunho de que outros mundos, outros seres, outros sujeitos e histórias, que estão pedindo passagem pra cá, querem emergir numa irrupção brusca e incontida; e, com o jabuti tateiam o tempo palimpsesto das passagens, andanças, paragens, num fluxo pausado. E você fala dele como indício dos passos da ancestralidade, aqueles pés pesados como os pés de anciãos enrugados pelo chão- história do percorrer e resistir. O jabuti elo da ancestralidade e da longevidade, esse vínculo necessário às transmutações, essas que produzem outras formas, histórias e modos do mundo ganhar e ser corpo.
E esse tatu-espaço acoplado ao jabuti-tempo plasmam pra mim agora como um cosmos raro, valioso, pois são mutações de silêncios, violências, dores, perversidades. Evocam cura, isso que ganha passagem nesses corpos míticos, sem ressentimentos, mas absolutamente apocalípticos e impossíveis de contenção.